A procura e a contemplação do rosto de Cristo como centro e fim do estudo teológico

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A procura e a contemplação do rosto de Cristo como centro e fim do estudo teológico

Por: Mons. Marco Sprizzi,

Representante do Santo Padre em Timor-Leste

 

Emo. Sr. Cardeal Dom Virgílio do Carmo da Silva, Arcebispo de Dili e Grand-Chanceler da UCT,

Revdo. Padre Joel Casimiro Pinto, Reitor da UCT,

Autoridades Acadêmicas, Eclesiásticas e Civis,

Irmãos no sacerdócio, Religiosos e Religiosas,

Queridos amigos,

         É para mim uma honra e motivo de alegria estar hoje aqui para ditar a Oratio Sapientiae da cerimonia de graduação do Curso Letivo 2024 do Instituto de Ciências Religiosas, Instituto agora integrado na Universidade Católica de Timor-Leste. Agradeço o Sr. Reitor pelo convite e pelas amáveis palavras que me dirigiu por ocasião da minha recente nomeação como Presidente do Departamento do Trabalho da Santa Sé, depois de 6 anos maravilhosos como Representante do Santo Padre em Timor-Leste.

Diante da liberdade que me foi deixada na escolha do “tema” desta palestra, e lembrando que já no ano passado, no dia 24 de Abril de 2024, me foi dado o privilegio de proferir a Oratio Sapientiae do Iudicium 2024 do ISFIT com titulo “O ministério do Sucessor de Pedro na luz da tradição da Igreja para o mundo de hoje”, e que em 2022, dia 24 de Março, tive também a honra de ditar a Oratio Sapientiae na Abertura do 1o Ano Académico da UCT, com titulo “As relações diplomáticas entre a Santa Sé e a EDTL, dediquei tempo a refletir sobre qual seria o tema mais apropriado para este ato acadêmico de hoje.

Pensei, por exemplo, ao tema da função eclesial da teologia dos estudos teológicos à luz da fundamental Instrução Donum Veritatis da Congregação para a Doutrina da Fé do 24 de maio de 1990, documento ainda central para a compreensão do estatuto epistemológico e da função pastoral do ensino das ciências religiosas.

Ligado a este tema, pensei também, mais especificamente, na função eclesial e apostólica dos docentes de religião nas escolas, que aqui, neste Instituto de Ciensas Religiosas de Dili, são formados para o serviço nas escolas do Pais.

Enquanto estava a pensar nisso e a começar a escrever o meu texto, porém, uma imagem muito familiar aparecia continuamente aos olhos da minha mente. Lembrava-me, com efeito, de quando eu mesmo era estudante na Pontifícia Universidade Gregoriana e na Pontifica Universidade Lateranense em Roma, cujas grandes salas de aulas estavam dominadas por um simples crucifixo de madeira, bem visível, colocado acima da cátedra, frente aos alunos.

Muito frequentemente – me lembro bem – enquanto meus ouvidos ficavam atentos às palavras dos professores, os meus olhos caíam e se detinham na imagem do Senhor crucificado.

Fixando-me nestas lembranças, pensava no enorme significado simbólico que elas, na realidade, apresentavam. Todas as ciências religiosas, de fato, e todas as disciplinas teológicas, todo estudo filosófico, humanístico, bíblico, moral, todo esforço de ensino e de conhecimento, todos os artigos e livros escritos, todas as revistas científicas e a biblioteca inteira, todas as aulas dadas e todas as horas de estudo pessoal, que constituem a vida quotidiana de quaisquer instituição acadêmica e formativa, tudo isso recebe seu sentido e sua síntese mais alta no olhar dirigido rumo ao rosto de Jesus, na contemplação do seu mistério, da sua verdade, no conhecimento sempre mais profundo e íntimo da sua Pessoa.

Os olhos fixos em Jesus (Carta aos Heb 12,2). Este é o meu lema sacerdotal, que escolhí mais de 25 anos atrás, e também é o lema que explica e motiva a existência e o rumo de um Centro Acadêmico filosófico e teológico verdadeiramente cristão, no respeito e na promoção da identidade própria de cada disciplina, segundo seu estatuto epistemológico e sua autonomia, nos limites e caraterísticas bem delineadas pela Instrução Donum Veritatis acima citada.

Assim, para esta aula de graduação, deixado um pouco de lado – ou, melhor, em background – o tema da vocação eclesial do teólogo, decidi de propor a todas vós de refletir juntos sobre a procura e a contemplação do rosto de Cristo, compreendido como vértice e resumo de todo trabalho acadêmico teológico assim com do ensino da religião nas escolas públicas e privadas.

Desejo que esta escolha possa constituir um estímulo, para todos os alunos e professores desta Instituição, para ter, durante as aulas e a atividade futura de docentes de religião, os olhos fixos em Jesus, ao mesmo tempo em que, corretamente, se ocuparão das matéria previstas pelo programa acadêmico.

«É tua face, JHWH, que eu procuro, / não me escondas a tua face. / Meu coração diz a teu respeito: / “Procura sua face!”» (Sl 26,8-9a). Estas luminosas palavras do Salmista parecem-me as mais adequadas para criar o cenário dentro do qual desejo colocar as reflexões que seguirão.

A aspiração de poder ver Deus, além de escutar sua voz, constitui um leit motiv de toda a Sagrada Escritura. A história da espiritualidade e da própria teologia testemunham também que a busca da face de Deus permanece como uma constante da experiência religiosa humana, ao longo dos séculos. Trata-se, com efeito, de um desejo que não se pode reprimir, pois está inscrito no íntimo do homem e conota a vocação última à qual cada um é chamado: a visão de Deus. De fato, assim comenta  o nosso Salmo Santo Agostinho: «Não procurei a ti em qualquer outro prêmio que esteja fora de ti, mas a tua face… não procurarei, de fato, algo de pouco valor, mas tua face, o Senhor, para te amar gratuitamente, dado que não encontro nada de mais precioso»[1].

A resposta de Deus à pergunta humana sobre o sentido da vida, pode ser percebida só enquanto se tem a coragem de fixar o olhar em Jesus de Nazaré. Sua ‘pretensão’ de ser a resposta ao desejo de vida, presente no coração de cada pessoa humana, merece – contrariamente aos preconceitos do secularismo dominante – de ser considerada e seriamente indagada. Por que negar ‘por princípio’ esta possibilidade? É profundamente falso afirmar que a cultura e a ciência precisam desviar da fé seu olhar para poder atuar com mais liberdade. Se vier a faltar o sentido mais profundo da existência humana, que a fé, de fato, propõe à liberdade do homem, qual seria a vantagem para uma verdadeira ciência e uma verdadeira cultura?

Através da busca do rosto divino, tenta-se expressar, de certa forma, as duas características fundamentais que o homem experimenta no seu relacionamento com a divindade: a imanência, mediante a qual ele percebe a proximidade de Deus, a sua presença, e assim se torna capaz de ter com Ele um contato, por assim dizer, real, pessoal, e até físico; e a transcendência, com a qual ele entende que Deus está sempre além de qualquer representação.

Orientando seu olhar ao rosto de Deus, o homem contempla a Sua glória e compreende qual é o caminho que deve fazer para ter paz e felicidade; subtrair-se a esta visão, pelo contrário, equivale a cair no vazio e ficar nas trevas. Fora do cone de luz que promana da face de Deus, a vida não teria mais sentido e o pavor, a angústia e o medo, tomariam posse da nossa existência. «Não me escondas a tua face» se torna, logo, a oração do homem de fé. A intensidade que se resume nesta súplica manifesta a mesma espessura de significado que está contida no desejo humano de poder contemplar o rosto de Deus.

Por outro lado, é bom precisar que a insistência sobre a procura da ‘face de Deus’ não contradiz o horizonte apofático com o qual a melhor tradição teológica sempre procurou de proteger o mistério, nem quer ignorar ou recusar os princípios próprios da assim chamada “teologia negativa”; muito pelo contrário. É justamente em força da aceitação destes pressupostos que o desejo de procurar a face de Deus adquire seu verdadeiro sentido. Ver Deus, com efeito, não é mais reduzido a um conteúdo da mera razão, mas se abre a ser uma exigência de toda a pessoa, onde também os sentidos são orientados à contemplação do Seu rosto e à adoração da sua presença.

  1. «Não farás de mim imagem alguma»

Assim sendo, o tema do rosto pretende expressar uma realidade mais ampla e abrangente: a busca de Deus. Aqui entra em primeiro plano um dos temas aos quais, muitas vezes, na teologia, não foi dada a importância devida. Também o Antigo Testamento conhece uma fé sustentada pela razão, que pretende procurar a Deus e tentar de entendê-lo. Uma razão que se conjuga com o pleno e total abandono nele, mas que não se recusa de pôr perguntas e de buscar o sentido dos acontecimentos (é interessante, a respeito, observar a presença desta problemática nos livros sapienciais, que manifestam o grande valor atribuído à razão como elemento universal que ‘une’ a humanidade na sua busca de Deus[2]).

É uma razão que sabe de não saber, pois, como repetem os profetas, «realmente o Deus de Israel é um Deus escondido». Esta característica impulsiona o mesmo israelita a procurar sem parar as causas e os motivos que induzem a investigar o mistério. Nesta busca, porém, se realiza algo de novo e inaudito para a mente: JHWH não é mais só o Deus procurado pelo homem, mas é, acima de tudo, o Deus que procura o homem. A história da revelação, de fato, antes de ser descrita como a procura de Deus por parte do homem, deve ser entendida como o caminho de Deus rumo àquele homem que lhe tinha virado as costas no jardim do Éden, iludindo-se de poder prescindir do seu Criador. A aliança permanecerá para sempre como o sinal desta busca, na qual JHWH compromete a si mesmo, com o povo que para si escolheu.

Entretanto, o pedido do homem bíblico e a sua exigência de ‘ver a Deus’ parecem topar com a impossibilidade de realizar este desejo, enquanto se permanece nesta vida. A cena do Êxodo é muito clara a este respeito. Moises, a quem Deus falava “face a face”, tem um só desejo: «Rogo-te que me mostres a tua glória» (Ex 33,18); isto é: torna-te presente, deixa-te ver! A resposta é bem conhecida: «“Farei passar diante de ti toda a minha beleza, e diante de ti pronunciarei o meu nome. Terei piedade de quem eu quiser ter piedade e terei compaixão de quem eu quiser ter compaixão.” E acrescentou: “mas não poderás ver a minha face, porque o homem não pode ver-me e continuar vivendo”. E JHWH disse ainda: “Eis aqui um lugar junto a mim. Põe-te sobre a rocha. Quando passar a minha glória, colocar-te-ei na fenda da rocha e cobrir-te-ei com a palma da mão até que eu tenha passado. Depois tirarei a palma da mão e me verás pelas costas. Minha face, porém, não se pode ver”» (Ex 33,19-23).

Sintomática, a propósito, é também a teofania de que fala Isaías (cf. Is 6,1-6). O profeta “vê o Senhor” e, ao redor dele, os serafins, que proclamam a sua santidade. Isaías sente-se “perdido” porque, sendo apenas um homem, “um homem de lábios impuros”, seus olhos “viram o Rei, o Senhor dos Exércitos”. A impostação profética, então, não se afasta da do Êxodo: não se pode ver Deus e permanecer em vida.

Estes acenos exemplificativos fazem compreender claramente que Israel conota-se, principalmente, não como a religião do “ver”, mas sim do “ouvir”. Shemá Israel permanecerá sempre como o mandamento ao qual o israelita deverá sempre se ater na sua vida terrena. A não visibilidade de Deus não pode ser arranhada nem pelo desejo mais profundo que o crente leva dentro de sim. A transcendência de JHWH nunca permitirá dele imagem alguma, e, até, nem a possibilidade de pronunciar o Seu nome (cf. Ex 20,4; Lv 19,4; Dt 4,15-20; 5,8). Ele deverá ficar para sempre protegido na esfera do mistério, que deixa transparecer a glória da sua divindade.

  1. «Vimos sua glória»

A não visibilidade de Deus, porém, não podia permanecer como a barreira imposta a Deus pela limitação da natureza humana. O ato criativo, aliás, não tinha privado o primeiro homem da vista de Deus. Somente depois da desobediência, esse sentiu a necessidade de “esconder-se” para não “ver” o Criador, não encontrar mais o “olhar” dele (cf. Gn 3,8-10). Era necessário, portanto, que se restabelecesse o plano originário da criação mediante a realização do último ato, do “vértice da criação”, que projetava tudo na glória do Unigênito. A renúncia a receber a glória que lhe era devida, leva o Filho a cumprir algo que era impensável para qualquer expressão religiosa precedente: assumir a natureza do homem.

A carta de São Paulo aos Filipenses abre o cenário para mergulhar-nos no mistério da kenosis de Deus: «Cristo Jesus, estando na forma de Deus, não usou de seu direito de ser tratado como um deus, mas se despojou, tomando a forma de escravo. Tornando-se semelhante aos homens e reconhecido em seu aspecto como um homem, abaixou-se, tornando-se obediente até a morte, à morte sobre uma cruz» (Fil 2, 5-8).

É nesta livre decisão divina que se quebra o círculo da não visibilidade de Deus e se abre para o homem um novo horizonte, que o leva a reconhecer Deus na sua história e na individualidade pessoal. Com a encarnação, a separação entre Deus e a humanidade é superada em força de uma ‘reconciliação’ quista por Deus e por Ele realizada na forma mais coerente, capaz de revelar a sua essência. Neste horizonte, o tornar-se homem de Deus, que preenche o vazio da antiga distancia, se encontra com o desejo do homem de poder vê-Lo.

A verdade de Deus, e sobre Deus, deste momento em diante, se irradia sobre o rosto de Jesus de Nazaré. Ele pode “falar” do Pai, porque traz impresso nos traços do seu rosto a perfeita semelhança com Ele. Em Jesus, de fato, «habita corporalmente toda a plenitude da divindade» (Col 2,9); sua ‘face’, portanto, enquanto ‘forma’ da identidade pessoal que cada homem possui, ‘diz’ aquilo que a mera palavra não consegue expressar. A testa, o nariz, as orelhas, os olhos, os lábios… compõem um instrumentário de comunicação que se condensa na sintonia expressiva do rosto[3]. Assim, quando o Pai quis revelar-se em plenitude, o fez com a encarnação do Filho. Aquilo que, pela sua própria natureza, é inexprimível, assume um rosto e uma linguagem.

É o caso de afirmar que, perante aquele rosto, toda pessoa é chamada à contemplação de sua beleza, enquanto qualquer linguagem humana que quisesse descrevê-la e explicá-la, tornar-se-ia só um balbuciar e, ao final, um silenciar. É preciso, então, assumir a mesma linguagem da revelação para poder ter acesso à verdade que ela quer expressar. Uma passagem de São Paulo, neste sentido, mostra com evidente clareza como toda a revelação de Deus, desde a criação até os nossos dias, se ‘concentra’ na glória do rosto de Cristo: «Deus que disse: “Do meio das trevas brilhe a luz!”, foi Ele mesmo quem reluziu em nossos corações, para fazer brilhar o conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de Cristo» (2 Cor 4,6): aquela mesma face que reluz perante os discípulos sobre o monte Tabor e revela a beleza do amor trinitário de Deus.

Estamos, então, em presença não só da “palavra” (“logos”), nem tampouco da simples ‘imagem’ (“eikon”), mas da “face” de Deus que brilha da sua própria glória. Aqui se revela a superioridade radical para com o ‘antigo pacto’, simbolizado em Moisés, que foi admitido a ‘ver’, de Deus, apenas as costas.

É a São João, todavia, que é preciso dirigir nosso olhar para descobrir a riqueza e a profundidade deste mistério. A partir do Prólogo do Evangelho, sua perspectiva está clara: «Ninguém jamais viu a Deus: o Filho unigênito, que está no seio do Pai, este o revelou» (Jo 1,18). A revelação de Jesus, afirma o Evangelista, é única e irrepetível, enquanto é realizada por Deus mesmo, mediante o seu único Filho. Este possui um conhecimento direto do Pai e, por isto mesmo, superior a qualquer outra manifestação precedente. Como diz também o autor da Epístola aos Hebreus: “Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias, que são os últimos, falou-nos por meio do Filho, […] É ele o resplendor de sua glória e a expressão de sua substância…” (Hb 1, 1-3).

O que o Filho faz conhecer de Deus é fruto da partilha de vida ab aeterno, porque só Ele “está no seio do Pai”. De nenhuma outra maneira João poderia afirmar com maior clareza a superioridade da revelação cristã sobre as outras formas religiosas de todos os tempos. Disso provém uma exigência teológica que nos obriga a ler de forma não setorial este horizonte da revelação: Jesus de Nazaré revela Deus na plenitude da sua humanidade. A sua admirável resposta a Felipe: «Quem me vê, vê o Pai» (Jo 14,9), compendia numa frase a mais profunda verdade da fé cristã: o Deus que se faz homem provoca um processo cognitivo inaudito, no que diz respeito ao conhecimento humano de Deus, pois ele se substancia numa série de ações que são típicas do conhecimento comum e pessoal, ou melhor, interpessoal, tais como ver, tocar, ouvir, conversar, contemplar…

A primeira Carta de São João expressa com força esta realidade, que concerne à globalidade dos sentidos: «O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos olhos, o que temos contemplado e as nossas mãos têm apalpado no tocante ao Verbo da vida (porque a vida se manifestou, e nós a temos visto; damos testemunho e vos anunciamos a vida eterna, que estava no Pai e que se nos manifestou), o que vimos e ouvimosnós vos anunciamos…» (1 Jo 1, 1-2).

Ouvir, ver, apalpar e contemplar: numa palavra, o conhecimento basilar de todo indivíduo, que comporta o envolvimento primário dos sentidos. Tudo da pessoa é envolvido na revelação dada por toda a pessoa de Jesus. Nada está excluído; tudo é, ao invés, transformado. O ver se une ao ouvir não para mudar o conteúdo deste último, mas para recebê-lo e assumi-lo a um nível diferente e complementar do conhecimento humano, que permite um contato bem mais profundo e integral com a realidade a ser conhecida.

Deixando-nos conduzir por Hans Urs von Balthasar, em suas páginas dedicadas ao tema “Ver, ouvir, ler” na sua célebre obra “Sponsa Verbi[4], vejamos, pois, um pouco mais de perto, embora brevemente, em que sentido temos que interpretar a complementaridade e a reciprocidade do conhecimento mediante a vista e o ouvido, em ordem à acolhida da revelação em Jesus Cristo.

O ouvir não se substitui ao ver, mas se integra com este, e vice-versa. No ouvir emerge a intensidade do som, mas é no ver que a objetividade do conteúdo tem o primado. Com a vista, de fato, o mundo dos objetos adquire ordem no espaço e ao homem é concedido de “dominar” o real. Através dos olhos, o mundo nos ‘pertence’. Através do ouvido somos capazes de criá-lo segundo a nossa imaginação. O ver permite de perceber a proximidade e a distância na luz; enquanto o ouvir percebe a voz e o som na obscuridade. Os olhos podem captar o olhar do outro e entrar, de certa forma, na intimidade dele; o ouvir tem que parar nas palavras e contentar-se da escuta para apreender as vibrações e tentar atingir o íntimo.

Resumindo esta complementaridade, poderíamos dizer, citando Resenzweig, que «os olhos são aqueles nos quais o rosto eterno resplandece sobre o homem, a boca é aquela de cujas palavras o homem vive»[5].

A partir destas observações pode-se compreender facilmente que a fé, se se colocasse diante da revelação com o desejo apenas de ouvir, arriscaria de não colher em plenitude a riqueza nela contida. O ver, com efeito, é tão essencial à verdadeira teologia da revelação e da fé quanto o escutar. Não é possível, portanto, reduzir toda a revelação à mera “palavra”. Claro, ela, a palavra, representa a categoria privilegiada com a qual o mistério vem ao nosso encontro na história da salvação; contudo, limitar-se somente à palavra não seria suficiente para entender a globalidade da revelação cristã.

Neste contexto, é útil rememorar as escolhas feitas pela Constituição Dogmática Dei Verbum. Não é por acaso que nela se insiste tanto em sublinhar o “gestis verbisque” da revelação – “gestis verbisque intrinsece inter se connexis” (cf. DV 2, 4, 7, 14, 17). Os “Acta Synodalia”, aliás, permitem de verificar a intenção dos Padres Conciliares de querer explicitar ao máximo, através desta escolha, o caráter “econômico”, isto é “dramático”, da salvação “que se realiza nos fatos históricos da vida de Jesus”, e que, portanto, não pode ser reduzido ao mero anúncio[6].

Jesus de Nazaré não pode ser reduzido, ‘comprimido’, ao só “dizer”; seus sinais possuem tanto valor revelativo quanto as suas palavras e só juntos compõem a linguagem da revelação. Sua paixão, morte e ressurreição não são palavras; são um evento, que deve ser primariamente ‘visto’ e contemplado. Só num segundo momento elas se tornarão kerigma e anúncio de um evento que traz em si a espessura real do ver e do experienciar.

A palavra, enfim, se por um lado não deixa de ser a categoria kerigmática privilegiada, não pode renunciar à complementaridade dos sinais que envolvem o conhecimento integral da pessoa, através dos outros sentidos. Isto é tão verdadeiro que, até lá onde ela parece ter o predomínio, é reenviada ao “sinal” por excelência, o sinal real, que deve ser visto e comido. O mistério eucarístico acompanhará para sempre a vida da Igreja como síntese de palavra e sinal, que reenvia à contemplação. A memória de Jesus Cristo não é deixada, pois, apenas à sua palavra, mas também à contemplação do seu rosto glorioso no ‘sinal’ do pão consagrado, no qual está realmente presente seu corpo ressuscitado, na integralidade da sua pessoa humana e divina[7].

O realismo da revelação, portanto, obriga a confrontar-se com uma identidade e com uma forma cuja verdade não poderá emergir apenas da exegese do texto; ela precisará também de ser narrada, ou melhor ‘re-presentada’, mediante o memorial que torna cada um contemporâneo, e também pintada ou esculpida para consentir aos olhos de ‘entrever’ a ‘beleza’ do Nazareno, a sua face.

  1. «Bem aventurados os olhos que veem o que vos vedes»

É necessário recuperar, a esta altura, a originalidade e a profundidade da intuição paulina quando atesta que Cristo Jesus «é imagem do Deus invisível» (Col 1,15). Ícone (έίκον) assume plenamente, neste caso, a sua plenitude semântica e torna explícito o escândalo da fé cristã. O termo, de fato, na riqueza do seu sentido, formado ao longo da história, se recusa a reduzir a mero símbolo aquilo que é representado. O ícone, por definição, é imagem histórica; não é por acaso que para a cultura grega indique, normalmente, o retrato. O retrato, porém, é possível apenas ali onde se representa um rosto real, concreto e histórico. Se assim não fosse, e figurasse um rosto de fantasia, não seria propriamente ‘retrato’.

Voltamos, assim, ao tema do rosto. Isto é: a expressão mais pessoal da própria individualidade; aquilo que, mais do que qualquer outra forma, exprime a identidade pessoal; aquilo que ninguém pode esconder sem perder a si mesmo; aquilo que ninguém tem o direito de tirar-me.

Deus, em Jesus Cristo, assume um rosto, uma face, Não se ouve mais, então, apenas a sua voz; pode-se contemplar, agora, também o seu semblante. A face de Jesus, ‘ícone’ que deixa transparecer Deus, torna-se, no mesmo instante, ícone de toda a humanidade redimida. A busca de Deus por parte do homem e a busca do homem por parte de Deus, que marcaram o caminho da humanidade inteira, se encontram e terminam em Jesus de Nazaré. Nele, finalmente, cada um pode reconhecer o seu próprio rosto e aquele do Pai Eterno. Deus que se encarna é verdadeiro homem.

Com exceção do pecado, ele carrega na sua humanidade todo o sentir e o demandar humano, pleno de alegria e de sofrimento, «pois ele mesmo foi provado em tudo, como nós» (Hb 4,16). O rosto de Cristo, assim, resume em si o rosto de todo homem, mas não se substitui a nenhum deles. A sua glória, antes, penetra a tal ponto o rosto daquele que nele crê, que o transforma num filho de Deus. Escreveu Olivier Clément: «O rosto de Cristo não é uma fronteira ou uma magia que fascina, é uma abertura de luz na qual a separação se anula e a diferença se confirma»[8].

Entretanto, nós não conhecemos a face de Jesus, enquanto conservamos seus gestos e palavras. Os evangelhos, come se sabe, não queriam ser uma ‘biografia’, no sentido moderno do termo, nem descrever seu semblante. Isto, porém, não diminui em nada a importância central da realidade humana e ‘física’ do Nazareno, inclusive depois da ressurreição, como demonstram as primeiras profissões de fé da comunidade primitiva, que remarcavam com insistência que o ressuscitado tinha sido “visto”: «Ele se deixou ver por Cefas, e depois pelos Doze» (1 Cor 15,5). O primeiro anúncio da Páscoa não relata as palavras de Jesus, mas o fato que apareceu aos Doze, isto é, foi visto por eles.

Depois da sua ressurreição, o encontro com Ele não é determinado pelo “falar”, mas pelo contemplar. O Espírito recordará aos discípulos, ao longo dos séculos, as suas palavras e delas dará sempre mais profunda inteligência (cf. Jo 16,3); naquela hora, porém, na hora do encontro com o ressuscitado, eles devem imprimir bem em suas memórias, e nos seus olhos, o rosto daquele sobre o qual a morte não tem mais poder, e que está para voltar ao Pai, levando consigo seu corpo ressuscitado.

A partir da Páscoa, paradoxalmente, tudo parece concentrar-se, principalmente, sobre o aparecer de Jesus e o correspondente vê-lo dos discípulos. Escreveu Karl Barth: «Este ”ofthe”, ou seja, esta visão real de Jesus ressuscitado – é o objeto direto do martyrion cristão, do testemunho dos cristãos»[9].

Nos séculos seguintes a arte se esmerou, numa busca contínua e incansável, no querer tracejar o rosto de Jesus. Entretanto, também nesta dimensão, teve que lutar não pouco para afirmar-se como forma genuína de linguagem para expressar a realidade da fé. Filhos de seus tempos, os cristãos dos primeiros decênios eram observantes da proibição antiga: “Não farás de mim imagem alguma”. A disciplina do antigo pacto foi também, no começo, a disciplina da nova aliança. Foi a progressiva consciência da centralidade da encarnação que fez compreender a inevitável superação do mandamento antigo, em vista de uma nova práxis: se Jesus era (e é) « o resplendor da glória de Deus e a expressão de sua substância [hipóstases]» (Hb 1,3), então esta tinha que resplandecer também na linguagem humana da arte, a mais sublime que ao homem é dado de poder criar. Jesus, o Filho do Deus invisível, tornava visível, em seu rosto humano, o Pai. Por que não tentar representá-lo?

É interessante lembrar, neste contexto, a narração de Eusébio de Cesaréia, o qual, na sua célebre “Historia Eclesiástica”, relata o primeiro testemunho de uma representação figurativa de Jesus. Deixamos a ele, portanto, a palavra: «Não considero justo – escreve Eusébio – omitir um fato digno de ser lembrado também a quantos virão depois de nós. Na cidade de Cesaréia, da qual vinha a mulher emoroiça que foi curada por nosso Salvador, mostrava-se a casa dela […]. Em cima de uma alta pedra, posta na frente da porta da mesma casa, estava um baixo-relevo de bronze, que representava uma mulher, ajoelhada e com as mãos estendidas em atitude de súplica; frente a este, estava um outro baixo-relevo, do mesmo material, no qual estava esculpida a imagem de um homem, de pé, envolvido esplendidamente num manto, que estendia a mão para a mulher […]. Esta escultura representava o rosto de nosso Senhor Jesus Cristo e ela existiu até os nossos dias, e nós mesmos a vimos… E não é de estranhar que os pagãos beneficiados por nosso Salvador fizeram isso, pois também de seus apóstolos Pedro e Paulo e do Mesmo Cristo Jesus se conheciam outras imagens e pinturas, como é natural, porque os antigos costumavam honrá-lo deste modo como Salvador, segundo o uso pagão existente entre eles»[10].

Agora, conforme os historiógrafos, a Historia Eclesiástica de Eusébio remonta ao ano 303. Isto nos permite afirmar que, já nos primeiros séculos, a Igreja tinha superado a barreira vetero-testamentária e estava decididamente inserida na lógica própria da encarnação.

O ingresso progressivo das diversas culturas levará a acentuar, conforme o caso, aspectos diferentes, que permanecerão até os nossos dias. O Oriente e o Ocidente mantiveram ambos o desejo e a tradição de representar o rosto de Cristo. O Oriente soube conservar melhor a tradição do ícone: nela expressou a forma privilegiada da oração e do culto. Esquematizando um pouco, na medida do possível, diríamos que o Oriente permanece marcadamente ‘joanino’, porque aposta na visão; enquanto o Ocidente é mais ‘paulino’, pois enfatiza principalmente o “ouvir” da fé (embora a sua arte também primou nas figurações de Cristo e de seu rosto). Não são estes, aliás, os dois pulmões com os quais, para usar uma expressão típica de João Paulo II, precisa respirar a Igreja toda?

No ícone, enquanto tal, encontramos provavelmente uma síntese particularmente eficaz entre as duas exigências; para exprimir o mistério que ele representa, com efeito, o ícone deve ser, juntamente, visto – ou melhor contemplado – e escutado. O ver e o ouvir, finalmente, deverão concentrar-se no celebrar: a síntese mais alta entre os dois momentos, assim, tornar-se-á evocação e memorial, e portanto, presença.

Concluindo, a verdade de Deus se expressa no rosto de Jesus Cristo. Na lógica da revelação, porém, o rosto mais profundamente expressivo e ‘revelativo’ do Filho de Deus é aquele que aparece no sofrimento do Gólgota. É aqui que se aplica a Jesus a expressão do quarto Cântico do Servo de JHWH, que, traduzido literalmente, diz: «Sua aparência era tão desfigurada, que não era mais a de um homem» (Is 52,14). Paradoxalmente, é a este mesmo rosto que se aplica, também verdadeiramente, levando ao cumprimento seu sentido mais profundo, a palavra do salmista: «Tu és o mais belo dos filhos dos homens» (Sl 45,3).

A verdade sobre Deus pode ser oferecida, mais uma vez, só por Deus. Lá onde o homem queria apenas fugir, porque a dor e o sofrimento obscurecem a mente a tal ponto de não conseguir mais compreender nem o sentido nem a necessidade de tanto sofrimento, justamente lá é pronunciada por Deus a última palavra que o homem pode ainda atender: amor. Jesus que morre na cruz, na aparente ausência e silêncio de Deus, revela no seu rosto o amor supremo daquele que soube dar tudo, sem nada reter para si.

Dar tudo, sem nada querer receber em troca (Jo 3,16). Dar tudo, para os que nada mereciam, porque ainda no pecado e na desobediência (Rm 5,8). Naquele rosto desfigurado brilha a mais pura luz do amor de Deus: Tu és o mais belo dos filhos dos homens.

A ressurreição não cancela o rosto humano de Jesus. O ‘trans-forma’ e lhe restitui a glória originária. É aqui que se encontra a decisiva motivação teológica da insistência com a qual os primeiros testemunhas anunciaram com força a identidade entre o crucificado e o ressuscitado.

A ressurreição, e a conseguinte ascensão aos Céus, não nos afasta do rosto de Jesus Cristo. Este se reflete na sua Igreja, novo “resplendor de sua glória”. A Igreja, que ‘faz’ a Eucaristia, que nos ‘’ a Eucaristia, que ‘vive’ da Eucaristia. A Igreja, Corpo de Cristo, “Corpus Christi verum[11], tem um rosto e uma voz. Pode ser vista e ouvida.

A história do Nazareno continua.

Tenho dito. Muito obrigado pela vossa atenção.

[1] Agostinho, Enarratio in Psalmum XXVI, in PL 36,198: «Quaesivi non a te aliquod extra te praemium, sed vultum tuum… non enim vile aliquid sed vultum tuum, Domine, requiram ut grátis te diligam, quia pretiosus aliquid non invenio».

[2] Cf. G. Von Rad, La sapienza in Israele, Neukirchen 1970, pp. 75-101.

[3] Cf. C. Valenziano, Bellezza del Dio di Gesù Cristo, Gorla 2000; G. Drobot, La lettura delle icone, Bologna 2000.

[4] H.U. Von Balthasar, Sponsa Verbi. Saggi Teologici II, Brescia 1972, pp. 455-458.

[5] F. Rosenzweig, La Stella della redenzione, Casale Monferrato 1985, pp. 452-453.

[6] Cf. F. Gil Hellin, Dei Verbum, Citta del Vaticano 1993, nota 20. Interessante, neste contexto, é também o fato que o pedido do Card. M. Brown de antecipar o “verbis” ao “gestisque” não foi acolhido (cf. Ibidem, p. 544).

[7] Cf. H. U. von Balthasar, Guardare, credere, mangiare, in Sponsa Verbi. Saggi Teologici II, pp. 473-474.

[8] O. Clément, Il volto interiore, Milano, 1978, p. 31.

[9] K. Barth, La resurrezione dei morti, Casale Monferrato 1984, pp. 93-94.

[10] Eusébio, História Eclesiástica, VII, 18.

[11] Sobre o tema da Igreja como “Corpus Christi verum”, e da Eucaristia como “Corpus Christi mysticum”, e da sucessiva inversão terminológica que ocorreu entre estes dois termos, cf. H. de Lubac, Meditazione sulla Chiesa, Jaca Book, Milano 1993, pp. 77-82.

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